sábado, 24 de julho de 2010

caderno de anotação

De tudo, o mais difícil agora é contar a história.

No começo, não. No começo o pior eram os domingos à tarde, os sábados à noite, a casa vazia, o telefone sem tocar. Era lembrar de quando você lia jornal de luz apagada de manhã cedinho, e de não entender, de verdade, de verdade, como seria possível viver sem ter isso todo dia.

No começo eu deitava na pontinha da cama, deixando espaço pra você, e pensava que talvez uma hora ou outra você fosse dormir ali de novo. Eu sentia sua ausência como se ela fosse uma pessoa. No começo, e um pouco depois, eu quase conseguia ouvir você me dizendo isso ou aquilo; eu tentava adivinhar se você tinha emagrecido, e bem lá dentro eu achava que sabia que você devia pensar em mim de vez em quando, como se eu fosse tão especial que.

No começo havia o que era só nosso. Os nossos segredos, aquele programa que só a gente fazia no domingo, aqueles discos que eu comprei e ouvi com você pela primeira vez. No começo, eu sentia a distância como um detalhe besta; e no começo, apesar de eu ter partido, e você também, você era em mim e eu era em você. Na dedicatória do livro que eu entendia, nas memórias que só faziam sentido na primeira pessoa do plural.

No começo era a falta, mas existiam nossos lugares sagrados. No começo, era o não você, e no começo era o não saber, era o não estar que deixavam os dias longos e as noites mas compridas ainda, mas era só. De alguma maneira você estava. Sempre.

Depois do começo, o que eu perdi primeiro foi a sua voz. Depois foi o seu cheiro. Depois, seu jeito de andar, que eu fui esquecendo, até não lembrar mais. E daí vieram as notícias sobre você, aquelas que eu esperava te ouvir contando, que eram nossas, e que eu fui sabendo por outros, muito, muito tempo depois de terem acontecido, e foi como se eu perdesse o seu rosto. E com as notícias dadas pelo não-você, lembrei de todas as coisas que você não tinha me dito. Lembrei do seu jeito de não telefonar, e de tudo que você tinha me falado na hora errada.

Eu me afastei, e depois foi o não te reconhecer. Não entender porque você me tratava como estranha, nenhuma initimidade, conversa genérica de msn. Não entender porque você fingia que não tinha me visto naquela festa. Não entender como de uma hora pra outra plim, todas aquelas coisas que a gente conversava tinham desaparecido, você não tinha mais nada a ver com aqueles problemas, eu, hein?, tudo novo, agora a vida mudou. Cena de videoclipe: você ali no Alaska, corta, o cenário agora é um quarto de hotel, e depois um bote, uma corrida de kart e e e.

De tudo, o mais difícil agora é contar a história. Ainda tenho saudade, mas não sei direito se é de você. Não sei mais direito do quê. Espio nossos segredos, e fico confusa, acho que eles eram só meus, primeira pessoa do singular, isso sim, e todos esses discos, livros, fotos, memórias, tudo, tudo está fora do lugar. Como se tivessem entrado de sapato na casa de um japonês velhinho, como a bomba que o sérvios jogaram bem em cima da biblioteca muçulmana no centro de Sarajevo, como se profanassem todos os lugares intocados e inocentes do mundo, como sacolinha descartável, como pagar a conta do restaurante, como me dá dois, cinquenta reais, ok, opa, desculpa, acabou, volta outro dia, hoje não tem, como um delírio, uma febre, uma coisa que aconteceu but not quite, um caderno de anotações contando a vida de uma outra pessoa.


2 comentários:

Daniel Jorge Habib disse...

Mari,
de 2000 prá cá houve mudanças na sua vida?
Pois olhe que aquele [último] dia que conversamos na escada da Stos. Andrade achei que nunca mais te veria! Você ia para um estágio de 10 meses em NY. Era isso?
E você vai se lembrar?
:)
Daqui tudo em paz, vivendo todos os dias de cada vez; são todos o mesmo em cada diferença

Rita Loiola disse...

Ah, gata, um dia, um dia as anotações faãrão sentido. Se é que existe um sentido, né?