quarta-feira, 16 de março de 2011

Essa coisa de ir embora é assim: bom, mas antes de dormir tem que fechar o olho antes de começar a pensar nas coisas.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

assim é 2011

Não existe como fazer uma foto da neve em que a gente possa saber como é a neve de verdade. Nem explicar como tudo pára de repente quando bate um vento de 75km/h e o cabelo começa a voar no olho e na bochecha. Pregado no papel de parede de uma hospedaria barata chilena eu vi um prego sustentando um cabide verde de plástico, e pendurei meu casaco molhado ali depois de chegar de viagem.
Só quem estuda alemão depois de velho sabe como é abrir um livro infantil e gastar uma hora e meia com um dicionário do lado tentando entender o primeiro parágrafo. Minha parte curitibana jamais esquecerá o indescritível ódio dos incontáveis espirros de barro na barra da calça saindo dos petit pavets soltos em dias de chuva.
Marquinhas de mofo na cortina do banheiro, os pedaços quebrados nas bordas das minhas xícaras e potes de sopa, isqueiros encontrados por todas as bolsas e partes da casa. Meus livros com as datas e os lugares onde foram comprados, essa Hannah Arendt com a Rita em Paris, essa Mafalda sozinha em Buenos Aires, esses que eu peguei da biblioteca do meu pai.
Entre palavras numa língua que eu não entendo, roupas com rasgos que só eu conheço, olhares que eu cruzei com desconhecidos de outro país, 2011 começa assim como um segredo indefectível. Uma coisa que, mesmo querendo, a gente só consegue contar pra gente mesmo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

30

Não me dou ao trabalho de entender suas manias: saindo mais cedo da cadeira ao meu lado, olheira de meses, cama desarrumada. Não me dou ao trabalho de entender o seu tempo - porque os segundos passam depressa, e é só. Não me dou ao trabalho da sua dor. Não me dou ao trabalho da minha dor, agora que ela já foi, e demais. Não me dou ao trabalho. Às palavras não ditas, às últimas gotas do copo, aos dias em que um pouquinho mais pra/se, às vozes abafadas no telefone, ao esperar um click, uma mudancinha minúscula, seu olho cruzando o mil e aí mil portas se abrem. Não me dou ao trabalho de querer mais um minuto everchanging. Não me dou ao trabalho do Velvet cantando I'll be your mirror. Não me dou ao trabalho de dias de chuva, nem de uma casa nova no sul, nem de nossos tênis da mesma cor. Não me dou ao trabalho de querer um dia Sophia Coppola. Também não me dou ao trabalho de estar aí. Sou a cama desarrumada, a que sai mais cedo da cadeira ao seu lado, e não tenho olheiras, minutos everchanging, portas se abrindo. Não me dou ao trabalho, e é só. Frio, aterrorizante, vazio, completo, sem sequer se dar ao trabalho de.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

para um desconhecido qualquer

There were never strawberries
like the ones we had
that sultry afternoon
sitting on the step
Let the sun beat
on our forgetfulness
Let the storm wash the plates
Você não está, mas eu te vejo mesmo assim. Um envelope sem carta dentro, cheirando correio, selo carimbado, letra de caneta bic. Você em nenhum lugar, e eu te assisto caminhando sozinho à noite, embaixo dos postes de luz de Brasília. Camiseta branca, havaianas 42. Eu te conto baixinho da minha segunda aula de alemão, zehn Flugzeuge fligen um dieWelt, der Hund, szwei Shneemmäner arbeiten sehr gut. Do vestido cinza que eu comprei, e que eu ando assim, esperando, mas com medo desse negócio de ir embora. Com muito medo. Banho demorado, comida japonesa, andando de bicicleta e guardando um dinheiro. Com vontade de ver neve mais uma vez. Com vontade de praia mais uma vez. Você não me diz nada, e eu gosto quando você fica quieto.
Te encontrei dentro do livro do Edwin Morgan, what fear was it that made the wind sound like fire, e dobrei a pontinha da página pra depois. Porque o depois vem quando eu menos espero - olha, nem lembrava, mas eu achava esse tão bonito... O que eu sempre gostei gostei em você foram as surpresas.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Bergman e eu

Desde os 23 anos tenho esse meu ritual de assistir um filme do Bergman a cada seis meses. É ao mesmo tempo um exercício pedagógico, uma obrigação auto imposta e um vício. Trato como um remédio, uma espécie de choque de gestão semestral, como se eu dissesse pra mim: "toma, sua idiota mimada, vai aprender o que é a vida, a beleza e a crueldade".
Faço isso há tempos; lá se vão sete anos. Mas até hoje eu realmente não sei o que sinto pelo Bergman. Não sei qual meu filme preferido do Bergman. Na minha falta de conhecimentos cinematográficos, nunca consegui ficar magnetizada com nada do Bergman - ele não tem aquela piração perfeccionista do Kubrik, nem aquela fotografia maravilhosa que o Christopher Doyle faz nas coisas do Wong Kar-Wai, nem o charme cafajeste do Fellini, nem o brilhantismo do Godard, nem a cafonice podrona-maravilha do Almodovar. Nope. Nada.
Gosto do Bergman porque ele é simples. Ele não tem nada de difícil. Nada de virtuoso, fenomenal. Acho até que ele devia ser um sueco feio de meias e chinelo. Não existe catarse, não existem grandes projetos, não existe final - nem triste, nem feliz. Gosto do Bergman, acho, porque ele é cru como uma porção morna da comida que a gente come todo dia.
É raro, mas de vez em quando eu deito na cama e choro, sempre de noite, mas por nada. Por nada mesmo, no sentido típico, pela solidão inexorável que nunca nunca nunca vai ter remédio, por ter feito da vida isso e aquilo, por não ter escapatória para além de acordar no outro dia e ter que escovar o dente, conversar, fazer o café, tédio. Às vezes eu choro, ou durmo demais, ou falo demais, ou fico quieta porque pra lá das minhas plantas e afazeres diários não existe muita coisa, mesmo. Uma caixa cheia de memórias, narrativas desconjuntadas e esperanças mais ou menos obscuras, pronto, é só isso que eu consigo ser.
O Bergman resolveu parar na frente desse vazio e ficar olhando, como se fosse o filho dele brincando no parquinho. A impressão que eu tenho é que ele abraçou isso e nunca teve pressa pra resolver. Eu gosto do Bergman, acho, porque ele me faz sentir acompanhada pelo meu nada próprio e até a fazer festinha pra ele. Eu adorei o último filme que assisti do Bergman, no começo da semana, porque a personagem principal chamava Marianne, como eu, e a atriz era a Liv Ullman. Mas ficou muito triste depois da terceira hora e eu resolvi assistir o resto no semestre que vem.
Eu gosto do Bergman do mesmo jeito que eu gosto de deitar no chão e ficar de olho fechado, sem ninguém por perto, sem esperar. Ali.

sábado, 24 de julho de 2010

in love with Derrida

"chaque fois que le pardon est effectivement exercé, il semble supposer quelque pouvoir souverain. (...) Ce dont je rêve, ce que j'essaie de penser comme la 'pureté' d'un pardon digne de ce nom, ce serait un pardon sans pouvoir: inconditionnel mais sans souveiraineté."


caderno de anotação

De tudo, o mais difícil agora é contar a história.

No começo, não. No começo o pior eram os domingos à tarde, os sábados à noite, a casa vazia, o telefone sem tocar. Era lembrar de quando você lia jornal de luz apagada de manhã cedinho, e de não entender, de verdade, de verdade, como seria possível viver sem ter isso todo dia.

No começo eu deitava na pontinha da cama, deixando espaço pra você, e pensava que talvez uma hora ou outra você fosse dormir ali de novo. Eu sentia sua ausência como se ela fosse uma pessoa. No começo, e um pouco depois, eu quase conseguia ouvir você me dizendo isso ou aquilo; eu tentava adivinhar se você tinha emagrecido, e bem lá dentro eu achava que sabia que você devia pensar em mim de vez em quando, como se eu fosse tão especial que.

No começo havia o que era só nosso. Os nossos segredos, aquele programa que só a gente fazia no domingo, aqueles discos que eu comprei e ouvi com você pela primeira vez. No começo, eu sentia a distância como um detalhe besta; e no começo, apesar de eu ter partido, e você também, você era em mim e eu era em você. Na dedicatória do livro que eu entendia, nas memórias que só faziam sentido na primeira pessoa do plural.

No começo era a falta, mas existiam nossos lugares sagrados. No começo, era o não você, e no começo era o não saber, era o não estar que deixavam os dias longos e as noites mas compridas ainda, mas era só. De alguma maneira você estava. Sempre.

Depois do começo, o que eu perdi primeiro foi a sua voz. Depois foi o seu cheiro. Depois, seu jeito de andar, que eu fui esquecendo, até não lembrar mais. E daí vieram as notícias sobre você, aquelas que eu esperava te ouvir contando, que eram nossas, e que eu fui sabendo por outros, muito, muito tempo depois de terem acontecido, e foi como se eu perdesse o seu rosto. E com as notícias dadas pelo não-você, lembrei de todas as coisas que você não tinha me dito. Lembrei do seu jeito de não telefonar, e de tudo que você tinha me falado na hora errada.

Eu me afastei, e depois foi o não te reconhecer. Não entender porque você me tratava como estranha, nenhuma initimidade, conversa genérica de msn. Não entender porque você fingia que não tinha me visto naquela festa. Não entender como de uma hora pra outra plim, todas aquelas coisas que a gente conversava tinham desaparecido, você não tinha mais nada a ver com aqueles problemas, eu, hein?, tudo novo, agora a vida mudou. Cena de videoclipe: você ali no Alaska, corta, o cenário agora é um quarto de hotel, e depois um bote, uma corrida de kart e e e.

De tudo, o mais difícil agora é contar a história. Ainda tenho saudade, mas não sei direito se é de você. Não sei mais direito do quê. Espio nossos segredos, e fico confusa, acho que eles eram só meus, primeira pessoa do singular, isso sim, e todos esses discos, livros, fotos, memórias, tudo, tudo está fora do lugar. Como se tivessem entrado de sapato na casa de um japonês velhinho, como a bomba que o sérvios jogaram bem em cima da biblioteca muçulmana no centro de Sarajevo, como se profanassem todos os lugares intocados e inocentes do mundo, como sacolinha descartável, como pagar a conta do restaurante, como me dá dois, cinquenta reais, ok, opa, desculpa, acabou, volta outro dia, hoje não tem, como um delírio, uma febre, uma coisa que aconteceu but not quite, um caderno de anotações contando a vida de uma outra pessoa.